O techno em Berlim é literalmente patrimônio cultural da humanidade, como bem foi reconhecido pela UNESCO no primeiro semestre deste ano.
Uma história que tem a música como um de seus pilares, mas que também passa pela luta de um povo, a resistência contra governos violentos e a celebração da união e paz.
A Rave The Planet é um movimento derivado da famosa Love Parade, ambas idealizadas pelo DJ Dr. Mole. A filha mais velha do movimento alemão fez história durante seus 20 anos de existência até um trágico fim, enquanto a caçula está novamente atraindo cada vez mais clubbers para curtir música eletrônica em trios elétricos na rua. Ano passado foram mais de 300.000 pessoas na Rave The Planet, que tem data marcada para 17/08 em Berlim.
Abaixo, confira o texto escrito por Marcelo Godoy para a revista impressa da House Mag em 2023, que conta sobre o trio elétrico que organizou ano passado com a presença de um dos criadores do techno de Detroit, Juan Atkins, e fala sobre a história dos eventos e seu impacto cultural.
Love Parade, a rave política que mudou o mundo
Trezentas mil pessoas caminharam 7 km na zona oeste de Berlim, permeadas por 18 trios elétricos em que a música eletrônica era o conduíte. Naquela tarde quente de verão europeu, e num cenário pós lockdown –após quase dois anos sem poder a ir em clubes e festas– a atmosfera era elétrica: finalmente poderíamos nos reunir em multidões novamente. Catarse social. E agora conto como um sonho de criança se tornou um dos momentos mais extraordinários da minha vida.
A Love Parade.
Em 1989, o DJ Dr. MoIe comemorou seu aniversário de forma inusitada: com sua namorada na época, reuniu caminhonetes com caixas de som, para um protesto pela paz e entendimento internacional através da música (o Muro de Berlim ainda não havia caído).
O primeiro evento reuniu 150 pessoas dançando na avenida Kufürstendamm, zona oeste de Berlim. Oito anos depois, o evento reuniu 1 milhão de pessoas. Na Alemanha dos anos 90, era muito comum grupos conhecidos como “Pose” fretarem ônibus e irem a outras cidades para clubes e raves. Era como a troca entre núcleos na era pré-internet. Muito do intercâmbio cultural raver alemão se deve a essa prática.
De 1997 a 2000 a Love Parade era o maior evento mundial de música eletrônica, chegando em suas maiores edições ter até 40 caminhões. E o seu tamanho também trouxe consequências indesejadas aos habitantes da cidade. Diversos fatores como lixo e degradação do parque Tiergarten, caminhões puramente comerciais com logomarcas gigantescas e duvidosa curadoria –e um certo caos associado ao evento– fizeram com que, em 2003, a Love Parade fosse buscar abrigo em outras cidades.
Em 2006, a marca foi vendida. E, em 2008 em Dortmund, teve a sua maior edição, com 1,6 milhão de pessoas. Porém, a Love Parade veria seu fim trágico no dia 24 de julho de 2010. Desta vez em Duisburg, os organizadores ignoraram os avisos da polícia e corpo de bombeiros e decidiram seguir com o evento, o qual tinha uma única via de acesso por baixo de um viaduto. Vinte e uma pessoas morreram pisoteadas e outras 600 ficaram feridas. Foi o fim da marca que por 20 anos foi um ponto convergente entre ravers do mundo todo.
Dez anos se passaram e Dr. MoIe decidiu ressuscitar o espírito do evento, desta vez mais atrelado com o ideal original, mas que precisou ser adiado pela pandemia. As primeiras comunicações ao público começaram em 2021, mas ainda não era hora. Com este novo evento, nomeado “Rave The Planet”, a organização buscou apoio público, alinhados a órgãos de governo e de segurança, instituições culturais e financiamento coletivo.
Desta vez era muito importante que a limpeza da cidade fosse mais bem cuidada e que o Tiergarten não fosse danificado como no passado. Foi um ano em que geraram engajamento e presença no consciente coletivo. Algo estava no forno e o público sendo indagado. É nesta hora que tenho que tornar o relato da experiência em algo mais pessoal: estar na Love Parade era um sonho de criança.
Eu ficava vidrado nas notícias da MTV vendo aquela multidão em festa. Então, ao saber de um novo evento similar, eu me mantive informado. A ideia de reunir muita gente com um intuito de festejar em paz, e poder trocar com todos os tipos de pessoas, é mágica. É a minha missão e o porquê eu escolhi o caminho da música.
É clichê, mas música salva vidas. Mesmo a maioria dos trios e até mesmo o caminhão principal, da organização/Dr. MoIe, não ser a minha linha de som, era a oportunidade de mostrar um som underground para muita gente. É crucial que as pessoas entendam a importância de eventos como este. De graça, na rua, em paz. Crianças, idosos, famílias, ravers (jovens e não tão mais jovens), de absolutamente todas as classes sociais, pessoas que nunca entraram num clube, que não conhecem a música, e até que nem gostam de música eletrônica, mas estão junto para celebrar; É terapia social em massa.
Os millenials de certa forma viram um pouco mais de acesso a isso –uma onda meio hippie, que desde o primeiro Summer of Love, atravessou gerações. Esse sentimento é extremamente importante para a galera mais nova. Num mundo onde cada vez mais o contato humano é substituído, temos que lembrar que acontecimentos assim marcam a vida das pessoas de uma forma extremamente positiva.
Conheci muitas pessoas que foram nas Love Parade originais, e 100% delas falavam do evento de uma forma nostálgica e apaixonada. Com isso em mente, comecei a bolar um plano –simples, no começo: alugar um caminhão pequeno, colocar umas caixas de som, talvez desses modelos com bateria, e tocar. Eu queria muito participar do evento e falei com alguns amigos, analisando quem toparia pular nessa viagem comigo. As inscrições estavam abertas.
Eu trabalho numa agência de publicidade e de vez em quando fazemos umas festas. Vários colegas também tocam, e comentei sobre meu plano na cozinha da agência. Foi então que um diretor executivo ouviu e nos disse: “Por que não fazemos isso direito?” Em dois dias montamos um, preparamos uma apresentação e começamos a captar patrocínio.
Optamos por fazer um projeto que não fosse apenas um logotipo num caminhão, mas que usasse da oportunidade para convergir valores, comunicação criativa e conceito alinhados. Fomos “abençoados” por conseguir um cliente que estava na hora e lugar certo. Uma empresa que abraçou nossa ideia louca e que também quer um mundo melhor por atitudes coletivas. A missão deles é dar nova vida a aparelhos eletrônicos, reduzindo emissão de carbono e salvando recursos.
A marca se chama Back Market e havia há pouco entrado no mercado alemão. Com um nome e a parceria certa, desenvolvemos o projeto do nosso caminhão. Era o “retorno” da Love Parade, da vida pós pandemia, do espírito dos anos 90, do amor, da união, da paz. Espalhamos lambe-lambes pelas ruas. Nosso caminhão tinha fotos da Love Parade de 1998, feitas por uma amiga nossa.
Como nosso headliner, trouxemos de volta a Berlim um dos criadores do techno: Juan Atkins. Os outros DJs do caminhão foram Anna Leevia, Kasumi, e eu com meu projeto de techno, Tempoespacio. Da concepção, captação, ao dia do evento, tudo foi feito em três meses. Foi um período muito interessante e intenso. Enfim, chegara o grande dia: 9 de julho de 2022. Lembro-me do momento, dentro do taxi, a caminho: Passando pela Potsdamer Platz, ansioso, estressado pela correria da produção, e curioso pelo que iria acontecer em poucas horas.
Não houve muita publicidade por parte da organização do evento, e as estimativas eram de que 25 mil pessoas. Chegando na Kufürstendamm, vendo os caminhões em fila… A ficha começava a cair. Sensação gostosa demais. O som começou, a parada andou e no começo foi uma aventura: árvores e galhos, e postes de luz antigos na avenida, fazendo com que precisássemos todos abaixar diversas vezes em cima do caminhão para não perdermos nossas cabeças na primeira parte do trajeto. Lógico que com emoção, a chuva apareceu, e mesmo com uma lona para proteger, molhou e queimou uma das 3 CDJs (a mais cara, a 3000, claro). Mas segue o baile.
E então, no set da Anna Leevia, chegando em Nollendorfplatz a gente se deu conta: havia muita gente. Não acreditávamos no que estávamos vendo: um mar de gente dançando por todos os lados. Lindo de ver e viver. Era minha hora de tocar, e foram 20 anos de pesquisa e preparo para aquele momento. Eu geralmente fico nervoso antes de apresentações grandes e importantes. Mas não nesse dia, não sei explicar, quando a mágica acontece e tudo flui.
Lembrar desse momento vai ser sempre uma injeção de sentimento bom no meu sistema (goosebumps). Momentos passando por Potsdamer Platz, até o portão de Brandemburgo, a galera vibrando no break das músicas…. Uau. Nunca havia tocado para tanta gente antes, e depois descobrimos que a estimativa oficial foi de 300 mil pessoas. E entregar a pista para Juan Atkins, que também havia tocado em 1997 e 98 na Love Parade, foi muito especial.
Fico feliz em fazer parte dos brasileiros que também se apresentaram nessa edição: Pet Duo, Alex Stein e Anna Leevia. Em nosso caminhão havia algumas pessoas que estavam na Love Parade dos anos 90 –e, foi muito bonita a reação delas. Algumas com lágrimas nos olhos, vendo a multidão se reunindo uma vez mais, depois de tanto tempo, por um sentimento comum: de ser levado pela música e nos lembrarmos que somos todos filhos do mesmo planeta Terra.
Foi uma experiência maravilhosa e que vamos carregar para toda vida. Talvez façamos outra no futuro, mas em 2023 não participaremos. De marinheiros de primeira viagem e com um tempo tão curto de produção, quem diria que tudo seria tão perfeito do jeito que foi –mesmo com todos os contratempos.
Em 3 meses, uma ideia virou um time, que abraçou uma marca, que criou um projeto artístico. Toda essa energia e sinergia para um trio-elétrico, 4 djs, 8 horas de som, com 150 convidados, open bar e comida, em meio a 300 mil pessoas dançando e curtindo ao ar livre, no meio da cidade.
E, é aqui que tenho que agradecer: Ao Ricardo, grande amigo meu, por ter acreditado e catapultado a ideia. À Innocean por deixar os colaboradores sonhar e incentivar seus passion projects. Ao time, Odile, Leon, Paula, Manuel. À Back Market por ser uma marca tão legal e apostado na gente para levar sua bandeira. À organização do evento pela colaboração e oportunidade. Ao Juan pela música e inspiração, ao Dragan pela paciência e suporte. Aos amigos pelo apoio e vibração e até pegar voos para poder viver aquele momento juntos.
De quebra, a cereja no bolo, foi caminhar pelo Tiergarten, levando o Juan Atkins de volta para o hotel, com vários amigos queridos e meu amor, ouvindo histórias de uma Berlim de outra época com o cara que originou isso tudo chamado techno. Foi foda. Paz, amor e música.