Por: Alexandre Albini
Foto de abertura: divulgação
Mesclando entre juventude e experiência, com vivências das mais valiosas, a primeira edição do C6 Fest provou que música é fundamental para qualquer idade ao juntar atrações de diversas gerações. Numa plateia compreendida em maior parte na faixa de 30 a 60 anos, foi comum ver pais e filhos curtindo juntos sonoridades atemporais que ainda fazem sucesso.
Descendente direto do saudoso Free Jazz (1985-2001) e Tim Festival (2003-2008), ambos organizados pela Dueto Produções de Monique Gardenberg, reuniu com excelência indie, rock alternativo, eletrônica e jazz em uma curadoria das mais aplicadas formada respectivamente por Hermano Vianna, Ronaldo Lemos, Felipe Hirsch, José Nogueira e Pedro Albuquerque.
Realizado de 18 a 20 de maio, no Rio, e entre os dias 19 e 21, em São Paulo, é patrocinado pelo banco digital C6. Com programação arrojada, 80% dos nomes internacionais fizeram sua estreia no Brasil. Em São Paulo, os shows foram sediados no parque Ibirapuera. Dividido em quatro palcos, o público pôde desfrutar de apresentações em áreas como tenda Heineken, MetLife (principal), Pacubra e, na sexta e domingo, no Auditório.
Os ingressos foram vendidos separadamente para cada espaço (custando a partir de R$ 370, com o combo para ter acesso a tudo nos três dias a partir de R$ 1.750), criando mini festivais dentro do todo. A separação por gêneros musicais tinha como objetivo garantir boa experiência, apesar de ser algo que prejudica “descobertas” para aqueles que preferem ir explorando possibilidades no decorrer do evento.
O espaço Pacubra, que funcionou muito bem ao ter características de “after oficial” quando os shows dos outros palcos já haviam encerrado, apresentou em parceria com o Grupo Tokyo a curadoria de DJs. O coletivo paulistano Gop Tun e o nova-iorquino Disco Tehran deram o tom na primeira noite.
Foto: divulgação
Apesar de questionada, a ordem das apresentações de sábado no palco principal se mostrou a melhor que poderia ser. O pontapé foi dado pelo Model 500. Formado por Juan Atkins, Milton Baldwin e Mark Taylor, o trio trouxe conforme esperado muitos timbres industriais, vozes robotizadas e batidas quebradas, fazendo o público que ia chegando aquecer enquanto o ápice da noite se aproximava. Foi a oportunidade de apreciar um dos pioneiros do techno de Detroit. Ótima preparação ao ato mais aguardado: Kraftwerk.
Foto: divulgação
Em sua quinta passagem pelo Brasil, com a última tendo sido em 2012 no Sónar São Paulo, apresentou identidade sonora incomparável através de faixas que marcaram gerações. Trilhas criadas décadas atrás para tocar nas pistas (influenciando fortemente David Bowie, New Order, Depeche Mode e uma legião de artistas relevantes) seguem mantendo enorme potência e pegada minimalista que faz dançar.
Após a morte de Florian Schneider em 2020, conta somente com um integrante da formação original: Ralf Hutter, de 76 anos. Completam o quarteto o percussionista eletrônico Henning Schmitz, responsável pelos teclados, além do programador de vídeos Falk Grieffenhagen. O músico Fritz Hilpert segue afastado das atividades por motivos de saúde, sendo substituído por Georg Bongartz.
As performances dos clássicos, gravados em maioria nos anos 1970 e 80, são baseadas em leves alterações apresentadas no álbum ao vivo Minimum-Maximum (2005). Ter a oportunidade de estar em um show do grupo é testemunhar a história da música pelo prisma da introdução e evolução dos sintetizadores. É tipo viajar no tempo, numa compreensão visionária de como a tecnologia impactaria futuramente a cultura e a sociedade.
Foto: divulgação
Minutos antes do início, uma projeção de algarismos já dava a entender que “Numbers” (do disco Computerwelt) seria a faixa de abertura. Na minha opinião uma das mais emblemáticas, pois é um techno feito antes da vertente existir de fato —inspirando nitidamente produtores musicais de Detroit como Kevin Saunderson, Juan Atkins e Derrick May, reunidos pelo nome “Belleville Three”. Sem parar foi seguida por “Computer World”, com seu synth e vocais inconfundíveis.
Foto: divulgação
“Space-Lab” veio na sequência junto da projeção de um satélite no espaço, homenageando a cidade de São Paulo ao utilizar a imagem de um disco voador que se aproxima dos prédios e pousa no Ibirapuera. Seguem com “The Man Machine”, também parte do sétimo álbum, de 1978. É o momento que homem e máquina se fundem em algo só, numa espécie de robotização do ser humano por intermédio dos processos industriais.
“Autobahn” (enquanto é exibido um Fusca nas conhecidas estradas alemãs sem limite de velocidade), “Computer Love” e “The Model” —que explora conceitos de busca pela perfeição, espinha dorsal das redes sociais e comerciais de cosméticos— criam o ambiente para a vibe atmosférica do medley “Tour de France”, ao reunir originais de 1983 com a releitura do álbum lançado em 2003 sobre a competição de ciclismo.
Foto: divulgação
É uma experiência audiovisual que nos faz refletir, com clara rejeição à alienação e à padronização da cultura. Não à toa, “The Robots” aborda o processo de automatização que substitui completamente o trabalho humano por máquinas. “Boing Boom Tschak” e “Music Non Stop” —o clímax, quando os integrantes se despedem um por vez de cada plataforma, ovacionados pelo público— encerram a apresentação.
E como se não fosse possível melhorar, a noite é concluída de maneira épica pelo duo Underworld. Formado pelo energético Karl Hyde e por Rick Smith empolga através de vocais ao vivo e uma produção refinada, que ajudou a introduzir no mainstream sons até então exclusivos do underground inglês e estadunidense. Trazendo uma música eletrônica mais orgânica e progressiva (tendo raízes do trance), cresce de intensidade até o hit “Born Slippy”, que finaliza o espetáculo com muita energia ao conquistar o público de um jeito envolvente.
Foto: divulgação
No Pacubra, Feminine Hi-Fi, Festa Luna (que agradou em cheio, ao usar faixas oitentistas memoráveis, o público do espaço lotado remanescente dos shows de eletrônica) e Pista Quente comandaram as ações. O domingo ficou a cargo de Cremosa Vinil, Deekapz —apenas a segunda atração desse palco que tive a chance de conferir, com a dupla fazendo uma seleção recheada de remixes para embalar da melhor forma quem já se despedia do festival— e Selvagem.
Como ninguém é de ferro, as opções de alimentação foram conjuntamente um ponto alto. Apesar de espalhadas pelo evento em distribuição esquisita, era possível encontrar cone de camarão crocante do Myk por R$ 45, arroz de cogumelo do Quincho a R$ 35, nhoque com molho funghi do Eataly a R$ 37, e hambúrguer do Bullguer a R$ 33. Entre as bebidas, o copo de chopp saia a R$ 16 e drinques variavam de R$ 33 a R$ 42.
A estrutura montada era grandiosa, com destaque para a tenda Heineken que tinha climatização e árvores no meio da pista. Os banheiros sempre limpos merecem igual destaque. Em contrapartida, o debate sobre o uso de espaços públicos para shows pagos se fez presente nas redes sociais —considerando o aumento de eventos privados no parque após ter a administração concedida a uma empresa não-estatal.
Não existia sinalização vertical entre os espaços, feita unicamente pela equipe do festival, e havia certa desinformação para esclarecer se determinada pulseira dava acesso ao palco Pacubra. A falta de alertas claros no término do evento obrigou parte do público a perguntar aos funcionários do parque que diziam erroneamente sobre a saída 2 (mesma da entrada) estar fechada, fazendo alguns irem até a 5.
A curta duração dos shows foi outra questão negativa. A recarga de cartão também foi falha em alguns momentos, seja pelos poucos pontos disponíveis em relação a quantidade de pessoas, ou ao formar filas especialmente nos intervalos e quando o sinal wi-fi sofreu instabilidades. Por outro lado, o fato de não ser cobrado e do incentivo da devolução ao final, em troca de uma garrafa de água, ao meu ver foram ações bem-vindas.
Apesar do som ter variado o volume de modo bem perceptível durante o show do Kraftwerk (indo de relativamente baixo para quase o dobro, passados 25 minutos, e depois retornando novamente a um patamar inferior), os equipamentos utilizados nas quatro pistas eram dos mais avançados. Esse é um quesito sempre avaliado com maior atenção, pois é do meu interesse por ser algo que pesquiso e trabalho há 16 anos.
Na parte da sustentabilidade, ainda que tenha recebido o selo Evento Neutro por compensar as emissões de carbono ao longo da produção do festival, com apoio a projetos brasileiros certificados, e aderido à campanha Sou Resíduo Zero, através da compostagem dos materiais orgânicos despejados, ter apenas descartáveis para chopp foi na contramão disso. Dar a cada pessoa um copo reutilizável não seria nada absurdo.
Mesmo a comunicação oficial sugerindo usar transporte por aplicativo (em razão da capacidade limitada para estacionamento de veículos) e houvesse certo esquema de mobilidade junto à prefeitura, é notório que podia ser ainda melhor, por meio de rotas especiais de ônibus para fazer conexão com estações do Metrô, haja vista que o Ibirapuera fica localizado entre a linhas 1 (azul), 2 (verde), 4 (amarela) e 5 (lilás).
Ao todo o saldo é bem positivo, até porque são raras as curadorias que apostam de maneira tão significativa em uma programação totalmente fora do radar aliado a excelente estrutura e local dos mais especiais na capital paulista. A torcida que fica é para se manter firme no calendário anual de grandes eventos, atraindo em 2024 um número muito maior de interessados em explorar o desconhecido. Vida longa ao C6 Fest!