Por Jonas Fachi
No último dia 27 de dezembro foi comemorado dois anos do Surreal Park. Após um primeiro ano mais tímido, em 2023 o clube de Camboriú passou a trazer grandes players da cena underground mundial, além de passar por transformações e percalços. Fato é que o Surreal veio para ficar, fortalecer e diversificar a cena eletrônica do Sul do país. Nas noites de eventos maiores, a sensação é que estamos dentro de um festival com um ambiente conectado a natureza, formando um clima de ‘’local perdido’’ onde o público pode se libertar e deixar todos os problemas do lado de fora.
Neste dia, dentre as várias possibilidades de pista, foram abertas a Nomad com um longset de Guy J e a imponente pista Ritual, recebendo dois expoentes do tech house; Joseph Capriati e Seth Troxler. Outros nomes como Ratier, Fuscarini e Kaka Franco e Tini Gessler completavam o line-up das duas pistas.
A expectativa para a estreia do ‘’baixinho’’ no Surreal Park era imensa, afinal, meses antes ele havia sido o nome mais pedido em uma postagem do clube perguntando quais artistas gostariam de ver se apresentando lá.
Guy J foi sem rival o nome mais comentado. Sua base de fãs, especialmente no Sul, está no ápice, lembrando-me a fase 2006 – 2011 do Sasha por aqui, onde havia toda uma tensão e energia a cada vez que ele vinha se apresentar. Alias, os paralelos com Sasha (que se apresenta no clube em fevereiro) não param por aqui, afinal naqueles anos, Sasha tocava com sua famosa Maven Controll, um dos primeiros controladores Midi para DJs que se tem notícia e a usava para descontruir as músicas anexado ao Ableton Live, criando assim um set único de músicas totalmente diferentes.
Somente os gênios fazem esse tipo de coisa, o comum não é suficiente, Guy J encontrou sua forma de deter um set exclusivo produzindo tracks que nunca serão lançadas, não são para o mercado, e sim para sua apresentação. Para você ter ideia, em um set de 5 horas como foi no Surreal, 80% das músicas são autorais (palavras dele).
É algo realmente impressionante, pois como tem vindo todos os anos para o Brasil, manter o set com novidades não é fácil, porém estamos falando de outro gênio, que produz em torno de 40 músicas em um ano! Um colosso.
Esse tipo de ‘’som exclusivo’’ alcança uma profundidade gigantesca em seus fãs, que o veem como alguém que está realmente preocupado em fazer grandes apresentações. Falando nisso, vamos a ela.
Cheguei no Surreal por volta da 01h e fui conferir a pista Ritual, um complexo gigantesco com um SS poderoso. Joseph Capriati estava no comando, o italiano jogava seu tradicional tech house com momentos de techno mais intenso. Não é um tipo de música que me agrada, porém reconheço sua habilidade em mixar e manter a pista dançando full time.
Às 03h fui conferir a reinaugurada pista Nomad e ouvi o final do set da ex modelo espanhola Cristina Tosio. A decoração da pista está muito bonita e o SS com pressão. Não sabia o que esperar da artista, não há conhecia. Ela estava tocando progressive house e ficou claro que preparou um set especialmente para tocar antes do Guy J.
Seu set estava coerente e foi entregue de forma apropriada, porém, em algum momento ela resolveu tocar a faixa ‘’Illusions’’, que está o ano todo no top 100 do beatport. Algo inacreditável, como alguém toca uma música do headliner da festa, antes dele? Os fãs mais atentos estavam, assim como eu, sem acreditar na tamanha falta de noção. Se existe algo que nunca se deve fazer, é isso! Guy J acabou nem tocando essa faixa depois, o que deixou as coisas menos feias.
A verdade é que todos estavam ansiosos para vê-lo em ação e quando deu 04h horas, a Nomad encheu de vez, mostrando que a maioria do público estava lá para ver o Israelense fazer sua mágica.
Precisa ter muita confiança para iniciar um set às 04h com uma introdução atmosférica sem batidas de quase 10 minutos! Eu achei que nunca ouviria algo semelhante a ‘’Drifting Memory’’ (ouça aqui) na pista de dança, e ele jogou seu som cinematográfico, só deixando um loop de baterias por baixo, flutuando até que todos resetassem suas energias e memórias do que havia acontecido até então – a festa começou agora.
Assim que as primeiras batidas 4×4 surgiram, ficou evidente que seria uma construção de set daquelas feitas com muito cuidado. Muitos artistas iriam sair acelerando, afinal era o meio da noite, todos queriam se divertir, mas Guy J pertence a outra escola, onde levar a pista de dança ao ápice é algo feito passo a passo, para quando chegar lá, tudo seja sentido com mais intensidade, e assim ele fez.
Em seu set, não há espaço para breaks vazios e depressivos, sempre há um ou dois loops de bateria tocando junto da música principal, por isso ele quase sempre está com o fone, pois é preciso estar atento ao ‘’caos’’ controlado que é ter 3, 4 canais abertos.
De uns anos para cá, Guy J abraçou de vez o aspecto mais sombrio de sua música, com baixos fortes e elementos misteriosos que ora ou outra recebem arpejos brilhantes e hipnóticos. As melodias, tão famosas e que ele tanto domina em sua discografia, são reservadas para momentos específicos do set.
Esse vídeo acima, já mostra uma aceleração e todos vibrando com um tom branco e vermelho do lado de fora no amanhecer. Uma faixa bem progressiva e tribal!
Os raios solares foram aparecendo e criando uma vibe incrível, ainda que eu ache que o som dele combine mais com a pista Bells, onde o clima dark predomina, entretando, a energia na Nomad estava tão boa que tudo fez sentido.
Às 05h45 ele joga um vocal muito provocativo e diferente, em uma pegada de tech house muito energética. Foi perfeito para por fogo na pista e levar todos ao delírio. Uma das poucas músicas fora do eixo ID ID, que predominou em quase toda apresentação. Alias, até mesmo as músicas dele conhecidas e lançadas, quase não tocou.
Um open hi-hat sempre dava o ritmo rápido crescente. A faixa abaixo foi uma das que mais gostei na noite, tensão misturada com intensidade e toques de bateria marcantes
Às 07h30 finalmente ele solta algo para o público mais fã se desmanchar. Era ‘’Day Of Light’’, lançada em 2019 e sem dúvidas uma das melhores dos últimos anos em sua vasta discografia. Não há como esquecer do toque em ‘’alerta’’ chamando no início, para logo depois entrar uma melodia que parece estar derretendo nas chamas, ou melhor, em um dia de luz, como sugere o nome, combinando perfeitamente com nossa manha progressiva embaixo de um teto vermelho e cercados por montanhas de um lugar distante.
A manhã seguiu e o ritmo se manteve em alta rotação, era o ponto de cruzeiro, onde todos sabem que não haverá pausas ou momentos mais relaxados, toda energia é sugada e a adrenalina sobe. O seu famoso remix de ‘’Pistolwhip’’ para Joshua Ryan aparece e leva todos ao delírio, aquela sirene que te deixa desconcertado até voltar uma batida devastadora. Que momento.
Na última meia hora, Guy J começou a segurar e um toque de piano leve, como um despertar surge, somente para tudo se transformar em lisergia e mais uma dose de energia.
Uma faixa emotiva e já era quase 09h, a pista estava tão cheia quanto no início, a Ritual já havia acabado e quem estava ali, queria mais! Infelizmente não havia possibilidade. Guy J simplesmente joga um dos vocais mais aclamados de 2022/23 com ‘’Running Up That Hill”. Essa música tem dado o que falar por conta de Stranger Things, tendo sido inserida como a música favorita de Max Mayfield na 4ª temporada da série. O sucesso foi tanto que a canção de 1985 de Kate Bush voltou às paradas, liderando o Spotify e iTunes e ganhando o coração de uma nova geração. O edit (dele é claro) da faixa continha camadas espaciais por baixo, com o vocal sendo cantado praticamente em sua totalidade e original. Que momento, que encerramento! Mãos para cima, palmas e muita emoção circundando todos os lados da pista.
O público estava extasiado, precisava de mais uma para tudo ser perfeito. Guy J dá o último play jogando Lost & Found, minha favorita dele e totalmente inesperada. Foi aquela última carga de emoção sendo liberada, sua melodia ímpar caiu como uma luva após horas de intensidade e climas obscuros.
Comemorei como uma criança no palco, tendo o privilégio de estar ali, próximo a ele, vendo-o fazer sua mágica com toda tranquilidade do mundo. Vi alguns amigos chorando na pista, pois eles, assim como eu, realmente amam a música de Guy J, um artista pós 2000 que conseguiu romper com fãs de época para se tornar um verdadeiro ídolo de toda uma geração de clubbers. Infelizmente ele é um dos poucos a conseguir isso, que é muito difícil – alcançar excelência tanto como DJ quanto produtor.
A prova disso é que ele tocou poucas faixas conhecidas e ainda assim fez um set que será lembrado por muito tempo. Foram anos e anos sendo o ‘’cara que produz as músicas que eu amo’’, para ‘’vou ver um mestre tocar’’. Ter músicas entre os tops charts não é mais tanto uma prioridade, e sim, ter um set exclusivo capaz de movimentar toda uma legião de fãs em sua direção, seja onde estiver.
Foi a melhor construção de set sua que eu já ouvi, alcançando aquele nível dos grandes DJs dos anos 90, formados na cena clubber. O melhor de tudo é saber que seus melhores anos como um artista total ainda estão por vir e que sua jornada como um dos líderes da cena progressive house está apenas começando.