Por Jonas Fachi
Fotos: Biah Art, Ebraim Martini, João Neto Fotografias, Bianca Lutt
Foram praticamente três anos de espera, duas edições impossibilitadas e muita energia acumulada entre os frequentadores do Templo para reviver o melhor dia do ano. Um dia em que Curitiba se torna a capital da música eletrônica na América do Sul. Um festival onde a reunião de amigos de todos os lados acontece, onde novos artistas são apresentados e também onde pratas da casa apresentam suas versões em big room. Uma coisa que admiro muito na curadoria do evento é que grandes personagens, nomes que ajudaram a construir a identidade musical do clube, são convidados para os melhores horários, independente de seus momentos na carreira. Dubfire, Sasha, John Digweed, Hernan Cattaneo, Joris Voorn são algumas das figuras que já foram chamadas a aproveitar o dia D da marca na lendária Pedreira Paulo Leminski & Ópera de Arame.
Cheguei um dia antes na cidade para aproveitar um pouco sua excelente culinária. A abertura dos portões estava prevista para às 10h de sábado, com os primeiros DJs às 11h. Essa antecipação de horários é estratégica, pois cria no imaginário coletivo a sensação de “já está acontecendo” e que momentos marcantes estariam sendo vividos por aqueles que se dispusessem a ir mais cedo. Tudo isso para fazer as pistas terem volume o quanto antes. Funcionou!
Nos primeiros anos a grande maioria do público chegava mais no final do dia, atrapalhando um pouco a experiência musical. Desta vez, um super nome internacional já estava agendado para às 15h, com Jan Blomqvist e seu live sensorial aparecendo com força nas redes sociais dos espectadores.
Cheguei no evento e os acessos estavam rápidos, primeiro ponto positivo. Os primeiros 30 minutos foram para reconhecimento de campo, ver como estava a decoração das pistas, os bares e novidades nas áreas de descanso. Como de costume, aquela qualidade no sistema de som e atenção em todos os detalhes estava presente em cada metro quadrado.
Passando pelo W Stage, me chamou atenção a decoração do palco remetendo a um templo budista em chamas, com lances de imagens de um dragão cuspindo fogo por dentro. Algo que com o anoitecer criou uma atmosfera densa atrás dos DJs. Nas palavras do VJ Henrique, um dos responsáveis pelas artes visuais do festival. “Foi utilizado co-referência a cultura da Indonésia, por isso, parece que é mesclado um dragão chinês com arquitetura indiana. Foi tudo baseado nas raízes do clube. A ideia era abrir um portal com outros mundos no led! Por isso as referências também do pôr do sol e dos elementos presentes no Warung.”, explica.
Luz – Rodrigo Rocca @rocca_lighting / Cenografia – Danilo @arteficialdesign / Arte visual – VJ Picolé @sw_henrique
Em seguida, me deparo com um círculo humano na saída da pista, ao me aproximar, vejo um rapaz de joelhos fazendo um pedido de casamento a sua namorada! Após o sim, todos vibraram com entusiasmo. Esse é o tipo de acontecimento que reforça a importância do evento na vida das pessoas e, convenhamos, para amantes do Templo e da boa música, fazer um pedido de casamento no melhor dia do ano faz todo sentido.
As pistas estavam cheias, com um fluxo de pessoas intenso, Zac inicia seu set no W Stage colocando todos para dançar. Seu estilo intenso e cheio de cargas explosivas foi perfeito para o sunset, fazendo uma transição de atmosfera importante, pois o W Stage realmente se transforma quando anoitece. Em seguida, fui ver um pouco de Boghosian na Ópera. Em baixo da pista havia uma local surpresa para os tickets do “experience”, com som tocando o que estava rolando acima, telão, espaço para massagens, salão de beleza e finger food.
Boghosian mostrava porque é um dos DJs mais respeitados do país. Sua missão de pegar uma pista pós Jan e Elekfantz com sons mais vocalizados, em ondas e leves, era por cadência, consistência e um pouco de imersão até a tão aguardada apresentação de WhoMadeWho.
Vale destacar a importância de ter DJs em meio a projetos de bandas eletrônicas. A ideia de dar uma quebra sonora para criar novas expectativas foi fundamental. Mais cedo, quem fez isso foi o novo residente do clube Edu Schwartz entregando para Jan e mais tarde aconteceria a mesma coisa com Albuquerque assumindo para preparar a pista para The Blessed Madonna.
A experiência da curadoria de conhecer como realmente acontece uma pista faz toda diferença. Quando se tem muitos estilos parecidos em sequência, é importante ter espaços de respiro ou intensidade para manter todos interessados. Um dos motivos do estrondoso sucesso da Ópera, além da qualidade dos projetos escolhidos e sua arquitetura sem igual, foi sem dúvidas a atuação dos DJs residentes.
WhoMadeNho na versão duo e um mix entre DJ set e live chegaram com tudo, do lado de fora, não era possível entrar mais ninguém. Eles me surpreenderam ao mesclar suas faixas mais conhecidas com transições para a versão DJ trazendo maior ritmo em uma pista querendo energia. Quando Jeppe Kjellberg assumia novamente cantando e se movimentando no palco com sua guitarra todos iam ao delírio.
Por volta das 08h fui para o camarim reencontrar Hernan Cattaneo e Nick Warren. Eles estavam em companhia de Sama AbdulHadi, que além de ser um prodígio do techno, é uma garota com uma energia incrível. Sua história de vida inspira e seu carisma é contagiante, depois do seu set, ela fez questão de subir no W Stage para curtir o b2b das lendas. Humildade e respeito fazem parte da construção de um grande artista, isso, com certeza, ela tem de sobra.
Eu sempre adorei estar na pista, na linha de frente, e posso dizer que os minutos que antecedem a aparição no palco dos artistas favoritos é uma das sensações mais incríveis de se viver. Desta vez, tive o privilégio de acompanhar os dois mestres na caminhada até o W Stage, aguardar com eles o momento de entrar no palco, vê-los subindo e sendo ovacionados. Realmente foi interessante ter essa visão “do outro lado” por um dia. Tenho certeza que muitas pessoas gostariam também de sentir o que é subir e ver mais de 10 mil pessoas esperando por aquele tipo de música que todos tanto amam. Como disse Carlito, um dos amigos de Catta que veio da Argentina para conhecer o festival; “somos privilegiados de estar aqui, vamos aproveitar!”.
Hernan Cattaneo & Nick Warren vem tocando juntos com frequência nos últimos 10 anos. Nick era ídolo de Hernan nos anos 90, hoje os dois são grandes amigos e têm carreiras irretocáveis. Eles já comandaram festivais para 10, 20, 50 mil pessoas e realmente sabem o que fazer quando sobem no palco. O que mais espanta é a tranquilidade com que encaram tudo. Como disse Nick durante o almoço que tivemos mais cedo; “no pressure”. Quem estava tocando era Innellea, e eles sabiam que a pista precisava agora de novos ares. Warren sobe primeiro e assume com um tom atmosférico, tirando toda a pressão que havia sido criada nas horas anteriores. “Agora é com a gente, do nosso jeit”. Nick é especialista em encontrar o groove certo, o ponto ideal da pista. Hernan sobe também para delírio dos fãs na linha de frente. O sistema deles era de três músicas para cada, com o intuito do set ter mais coerência e dar tempo para encontrarem as músicas ideais para cada momento.
A primeira hora foi de pura cadência e de uma sintonia perfeita – não era possível saber quem estava tocando, a não ser que você ficasse prestando atenção o tempo todo. Resolvi ir para a pista depois que o sound system foi corrigido, afinal, nos primeiros 30 minutos estava bem mais baixo do que no Innellea. Reencontrar grandes amigos ali no front foi especial, são clubbers de longa data e com certeza a festa com eles ficou ainda melhor.
Avidus com a track, “Relief” fechou a primeira hora, certamente a melhor desse momento, que faixa linda!
Em seguida, SHMN com um vocal marcante em “To Be Loved” trouxe aquela sensação de estarmos na praia brava. No fundo, esse também é um dos objetivos do evento; trazer aquela vibe e alma do Templo para a Pedreira.
Às 22h30 é possível sentir os primeiros picos de energia. Ruben Karapetyan em “Venus” (Fabri Lopez Remix) com Hernan claramente tentando dar um ritmo mais intenso ao set. Essa é uma daquelas tracks clássicas dentro dos sets dele no Warung. Groove, balanço e obscuridade tremendas. Era o argentino colocando o modo club em cima de um mar de pessoas.
O que é mais legal é que eles sempre vão tocar seus estilos particulares. Confiam e passam confiança no que fazem, pois se garantem nas mixagens, em uma espécie de jogo mental que vai na contramão do que se diz para fazer em grandes pistas.
Quem já os conhecia, sabia que eles iriam construir com calma e paciência até um ponto em que a pista pegaria fogo por si só. Nada era forçado, nada era atropelado, a energia foi dosada para os grandes momentos chegarem com muito mais força. Suas músicas nessas primeiras 2 horas tiveram o intuito de criar fluxo contínuo em uma pista que havia ouvido sons explosivos a tarde toda e início de noite.
Entre os dois, Nick sempre será o cara que irá manter a pista sob controle, enquanto Hernan faz o papel de puxar o som adiante, de colocar mais euforia. Difere-se de quando Hernan toca com Guy J, aí os papéis se invertem.
Vale lembrar também de como nossa percepção de ritmo muda quando estamos em uma pista tão ampla, com SS gigantesco, onde as ondas sonoras precisam percorrer grandes espaços até preencherem nossas mentes com o que realmente está acontecendo.
Às 23h, o ritmo era de voo em velocidade de cruzeiro, batidas pesadas, um certo delírio e faixas marcantes saindo dos dois lados.
Depeche Mode em um set deles não poderia faltar, e veio com “The Things You Said” (ID Remix), onde Nick soube fazer a leitura perfeita para o meio das 4 horas de show. Ter essa marcação de algo mais emotivo, que todos iriam lembrar, sempre é importante. As mãos, claro, foram para cima!
Às, 23h25, entra uma daquelas músicas que parecem que foram feitas para determinados momentos e que caiu como uma luva na pista. Um remix moderno, emocional e, ao mesmo tempo, com batidas fortes de Hernan Cattaneo & Soundexile para a faixa “Astronautin” (Stephan Bodzin). Que momento!
Na sequência, Hernan entra com o novo lançamento de Sasha, faixa em parceria com Photek chamada “Aviator” e que ele havia tocado no último Resident Radio Show. Na ida para Curitiba, ouvindo o programa, comentei no carro com meu amigo Gustavo que ele provavelmente a tocaria. É exatamente o tipo de faixa que gosta para dar uma variada no set.
Em seguida, Nick acompanha com o que considero sua melhor escolha nessas 4 horas. Um ritmo de techno progressivo, com acordes obscuros e ambiência misteriosa. O vídeo abaixo fala por si só.
Enquanto eu ouvia os vídeos para o review, ficou nítido que essa pegada deles, se fosse no Warung, seria algo até um pouco “brutal”, com diversos flertes no techno. O bpm em 123 fazia as batidas menos rápidas ganharem ainda mais peso e pressão – a pista estava adorando. Olho para trás e vejo aquela clássica vibe de olhos fechados e balanço em sincronia, tudo correndo muito bem, a pista estava dominada!
Voltei para o palco para contemplar a última hora de set. E que hora!
Às 12h20 Nick joga nada menos que “Teardrop” (ID Remix), de Massive Attack! Um clássico daqueles que são escolhidos de forma pessoal, algo como “é isso que eu gosto de ouvir”. Era sinal de que ele estava feliz, confiante de que poderia soltar o que quisesse que iria ser compreendido.
Hernan não deixa por menos e traz aquela que tem sido a música que mais tenho ouvido nas últimas semanas; “Always” de RÜFÜS DU SOL, com o incrível remix de Ezequiel Arias. Guardem esse nome!
A pista estava irradiante, batendo palmas, entregue de corpo e alma! Quase 4 horas de set que foram construídas para chegar em momentos super emocionais que se somavam a picos de energia seguidos, tirando todos do chão.
Hernan tratou de pegar uma sequência final e garantir que a construção progressiva e ascendente em curva fosse feita da melhor forma. O próprio Nick reconheceu o poder de Hernan para criar momentos de euforia inesquecíveis, mixando mais rápido e sem descanso. As palmas e abraços de Nick com ele faziam todos notar a grande amizade que possuem, além da admiração mútua pelo talento e carreira construídos.
Mais um vocal especial vem através de Röyksopp – “This Tima, This Place…” feat Beki Mari. Que força, um break que mais uma vez fez todos vibrarem.
Nick volta a assumir para mais duas faixas finais trazendo o ritmo para um tom de encerramento. Era preciso pelo menos mais 1 hora de set para eles poderem desconstruir com vários clássicos e momentos especiais. Porém, o prazo de 01h estava dado e foi respeitado protocolarmente. Sem problemas, o público estava em plenitude, rasgando aplausos e gritos em agradecimento por essa oportunidade de vê-los juntos pela primeira vez no Brasil. Demorou, mas não poderia ser em outro lugar, se não este. Ainda, espero ver o Warung trazendo Nick novamente para long sets como nos velhos tempos.
Infelizmente, não pude ver um dos meus DJs favoritos de techno na atualidade, mas tenho certeza que Marcel Dettmann entregou tudo aquilo que os ravers da Pedreira esperavam. Pista aliás que estava esplêndida, com um sistema de iluminação jamais visto no WDF. Espero também poder ver em breve Sama AbdulHadi no clube, é uma artista que tem muito a mostrar. Outros artistas que admiro e não consegui ver como Elekfantz, BLANCAh e Leo Janeiro; sei que escolheram o que tinham de melhor para este dia.
Olhando para a parte organizacional, tudo correu muito bem na medida do possível, afinal é enorme a complexidade logística e gestão de espaços para tudo fluir. Banheiros e bares com poucas filas, sistemas funcionando corretamente e todos trabalhando com dedicação. O ponto negativo que colocaria, foi a demora em ajustar o volume pós transição do live do Innellea para Hc e Nick no mixer.
O evento recebeu mais de 17 mil pessoas, a rede hoteleira estava lotada como não ocorria há um bom tempo. Os desdobramentos econômicos de um festival dessa magnitude para a cidade são enormes e incalculáveis. Definitivamente o Warung Day Festival se tornou um patrimônio cultural de Curitiba e deve ser tratado como um dos pontos altos no calendário musical da América do Sul, pois é um festival que consegue perfurar bolhas sociais, trazer muitas pessoas de todo o mundo e puxar outras que não são do meio eletrônico. Ainda, não menos importante, consolidar novos públicos e reviver as almas daqueles que estão nisso há muito tempo. Que venha 2023.